domingo, 28 de junho de 2009

Telma pede o divórcio pela terceira vez (Ou: George encontra Telma)


A mãe de Telma, dona Arminda, estava assando pãezinhos de queijo e não gostou nadinha da aparição súbita da filha com as duas crianças mais Bartolomeu naquela noite fria de junho. Passado o susto, ela, uma mulher eminentemente prática, voltou aos bolinhos e, enquanto passava as massinhas cruas nas mãos, modelando-as com fúria selvagem até que ficassem bem redondas, disse em tom sacerdotal:
- Tenho certeza que você sabe, querida, que o lugar de uma mulher é ao lado do marido. Não fica nada bem uma mulher casada apartar-se do esposo e sair às cegas a esta hora da noite. Vamos, reúna o que lhe restou de juízo e volte para casa.
E foi por isso que Telma, com as duas crianças e um Bartolomeu estressadíssimo retornou à estação de trem e tornou a voltar para casa, enquanto dona Arminda passou a chave na porta com um suspiro de alívio, agradecendo mais uma vez aos céus por seu próprio marido já ter morrido e lamentando por Telma, mas sabendo que com alguma sorte, ela também ficaria viúva mais cedo ou mais tarde e, de qualquer forma, ela não queria assumir nenhum tipo de compromisso - não agora que podia ir ao baile da meia-idade todas as tardes, além de jogar seu bridge com as meninas - Mafalda de 65 anos e Wilma de 72. Não. Definitivamente não permitiria que sua bem estudada paz fosse rompida por uma mulher jovem e infeliz com todos os seus fardos, ainda que esta mulher fosse sua própria filha. E aliviou a consciência ao lembrar que aguentara o falecido por mais tempo que poderia desejar sem que sua própria mãe fizesse qualquer coisa para ajudar. E se isso não foi o suficiente para aliviar o peso que lhe ia na alma, o bom vinho alemão que tomou em seguida o fez.
Enquanto isso, com o coração pesado e com a alma desacreditada na vida e no mundo, Telma entrou na sala de sua casa; mesmo do vestíbulo, era possível ver a figura altiva de Henri na cozinha. Ele comia um caqui. Comer um caqui para Telma era comer um caqui. Dá-se uma dentada na fruta e pronto. Mas não para Henri! Comer um caqui obedecia a todo um ritual de perfeccionismo como em tudo o mais na vida dele: com uma faquinha, ele descascava o caqui bem rente à superfície, colocando as finíssimas tirinhas de casca sob o formato de uma serpente adormecida no interior de um pires, enquanto cortava cada pedacinho do caqui, levandos-a à boca, um de cada vez. Estava em frente à pia da cozinha e não fez menção de se virar quando Telma e as crianças entraram.
- Papai! - Sophie invadiu a cozinha, correndo aos braços de Henri. - Estávamos na casa da vovó e fomos muito mal recebidos. Ela nos mandou embora!
- É verdade - disse Louis entrando após a irmã. - E mamãe nos mentiu que há uma guerra a caminho e que os turcos iriam nos matar a todos.
- É mesmo? - disse Henri com voz suave, dando beijinhos nas crianças e ignorando a presença de Telma, que entrou na cozinha e encostou seu corpo cansado no armário. - Vejo que viveram muitas aventuras.
- Nós fomos visitar a mamãe - falou Telma em um tom neutro.
Henri não respondeu. Seus olhos passaram rapidamente pela bagagem deixada no chão da sala, incluindo a casinha de viajar do gato.
- Muito bem, crianças. Agora, vão para o quarto. Preciso ter uma conversinha com a mãe de vocês...
As crianças deram um beijo de boa noite nos pais, libertaram Bartolomeu de seu confinamento e subiram em passinhos ligeiros a escada, comentando as últimas novidades do que lhes pareceu o dia mais excitante do ano.
Henri largou a faquinha no balcão e limpou os lábios. O relógio da sala tocou uma fina badalada indicando que eram oito e meia da noite. Telma aguardou.
O marido se aproximou dela. Começou a apalpar suavemente o pescoço de Telma. Acariciava, com suas mãos enormes, o pescoço, o rosto e os cabelos da mulher; surpreendendo Telma, ele abriu sua blusa e tirou um dos seios para fora, começando a sugar o bico como se fosse um bebê. Ela tentava timidamente escapar, sussurrar que parasse, puxar a blusa... ele continuou a sugar e então... e então ele parou. Fechou a blusa dela, olhou firme em seu belo rosto, ergueu bem alto a mão e (oh, Deus! Como me odeio por estar escrevendo algo assim!) desceu-a com toda a força na face de Telma, provocando um barulho inesperado na noite fria - e o cão da vizinha pôs-se a latir.
- Nunca mais, vagabunda, faça algo assim. Nunca mais!
Então, ele ajeitou-se, como se tivesse comentado com ela as oscilações do dólar. Passou as mãos pelo cabelo e disse no tom comedido e suave de sempre:
- E amanhã... livre-se disso! - apontou para a barriga de Telma e subiu as escadas em direção ao quarto.
O universo alargou-se. Ou, talvez, tenha iniciado seu movimento de retroceder. Sim, houve tempo para tudo isso. Ou talvez, não. Talvez fosse apenas um segundo longo demais. O fato é que Telma não se permitiu chorar. Ela apenas lembra de ter saído de casa. Com a bolsa que ainda estava em seu ombro e sem mesmo vestir seu casaco grosso de inverno, ela ganhou a rua. Todo o seu corpo pedia para chorar. Toda a sua alma negava este choro. Ela havia chegado no fundo do poço: agora só restava subir!
Telma nada sabia sobre fundos de poços, exceto que agora um deles era seu lar. Sabendo que sua alma só reconhecia a estação de trens, migrou para lá em passinhos rápidos, provocando uma ondulação de sons com seus saltos no saguão, agora rico em vagabundos miseráveis que esmolavam dinheiro, prostitutas baratas, bêbados e toda a fauna que Telma não conhecia, mas de cuja existência - ela que conhecia a dor - desconfiava.
Tomou um trem.
Sentou-se - não pensou seriamente em Henri; nem em si mesma ou nos filhos. No que pensou Telma? Ora, eu não sei! Não faço a menor ideia. Ela pensou em algo muito banal, como, por exemplo, em como a alma se separa do corpo após a morte e porque não o faz agora mesmo? Talvez fosse tudo mentira, ela pensou, os olhos secos, fitando o vazio. Um homem feio e sujo a fitou com uma espécie asquerosa de desejo. "Tomara que ele me mate", pensou Telma. Mas não queria - não agora! - tornar-se uma vítima medonha de si mesma. Olhou friamente para o homem e desceu.
Não sabia onde estava. Sabia apenas - e muito remotamente - que descera em um lugar bem próximo da casa de Henri (nunca mais seria sua casa! Era a casa de Henri ou a casa das crianças, mas não a dela: a dela era o fundo do poço!).
(Também não sabia, é claro, que estava muito, muito perto da casa de George).
Saiu da estação. Observou o bairro tão próximo ao seu. Prédios e prédios e prédios. Havia muitos estudantes por ali - um reduto de universitários, provavelmente.
Ela observou tudo: os prédios brancos, os bancos de praça espalhados aqui e ali; as velhinhas que recolhiam seus cachorros após tê-los levados para se aliviar na grama. Ela via e registrava - e sentiu uma imensa inveja de quem quer que fosse que vivesse nas redondezas. Qualquer que fossem os problemas daquela gente, pensou Telma, nenhum deles tinha um marido horrível com dois filhos que pareciam não amar a mãe e com um pequeno futuro assassinado na barriga.
E, de repente, ela, que já conhecia a Telma Boa e a Telma Má, conheceu também a terceira Telma: a Telma Louca. Isso porque, subitamente, como uma onda que brota do nada, ela desejou que os mendigos a estuprassem. E que depois a matassem - sem muito sofrimento, por favor! Apenas uma paulada certeira na cabeça - nada de muito sangue, sim? Ainda possuída pela Telma Louca, ela foi se encaminhando para o banco em frente ao prédio de George; e sentou-se ali; e reclinou-se até deitar-se de fato; e esperou que a Morte viesse; e adormeceu - apagou-se como uma velha lâmpada.
A porta do edifício abriu-se, e um rapaz apareceu trazendo o lixo. Seus olhos viram uma moça deitada sobre o banco - o que uma moça bem vestida e bonita estaria fazendo deitada em um banco público? George calculou que ela estava passando mal ou era uma bêbada. Curioso, aproximou-se.
E percebeu, ainda à distância, que aquela, outra não era, senão a Mulher do Trem! Mas não era possível! ... No entanto... Sim! Era mesmo ela! Era ela sem dúvida! O coração de George contraiu-se ao tamanho de uma ervilha e ficou pesado como chumbo, enquanto dava saltos verdadeiramente mortais dentro do seu peito, ao ponto dele pensar pela primeira vez: "Vou morrer!". Mas não deu grande importância à morte. Nem ao vento que espalhou o lixo que ele foi largando pelo caminho. Nem ao avião que passou provocando barulho, os aos cães dos vizinhos, ou aos gritinhos das crianças do prédio. George não viu nem ouviu nada disso. Todos os seus sentidos estavam presos à mulher do banco que lhe confirmaram: sem dúvida, era a mulher do trem! George - que muito raramente também era capaz de alguma lucidez - olhou para todos os lados e percebeu rapidamente que ninguém o olhava ou estava interessado na mulher do banco. Ele se lembrou do quanto aquela cidade era fria, ao ponto de chutarem um cadáver se lhes aparecesse algum atravacando-lhes o caminho. George fez que sim com a cabeça. E para o quê George fez sim? Vou saber! Não tenho a mais pálida ideia. Sei apenas que, sem pestanejar, George enfiou os braços sob o corpo da mulher e, tomando-a no colo, levou-a para seu apartamento.

16 comentários:

  1. Bem, se eu já tinha irc de caqui antes, agora então... :P

    O que vira a seguir??

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  2. Uauuuu, você está se superando a cada dia, não conseguia nem imaginar como Telma iria conhecer George, e de repente você chega lá de uma maneira tranquila, enredada e fustigante.
    Bravo !!!!!
    Falando sério heim, essa espécie de pessoas como Henri já deveriam estar extintos da face da terra. Mas pior que ainda existem por aí!!!!!!!!!
    Bravo agaim, congratulations.

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  3. Já sei, você está querendo castigar todos nós e não conta como foi o despertar de Telma nos braços de George !!!!!!!!!!!!!!!!

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  4. Eu parto o caqui no meio e como de colherziha hahahaha
    Dragãozinho, só mesmo conhecendo vc há tanto para entender tanta carga em cada momento.
    Porém não sei se o termo seria discordar, mas fiquei pensando se uma mulher, por pior que esteja se sentindo, desejaria ser estuprada. Num momento desse, de desespero ela poderia ter desejado tudo o mais querendo se castigar e dar um final a tudo, mas estupro... isso me assusta.
    Mas continuemos, pois já estou imaginando o grande terror que será esse relacionamento ai ai ai

    bjão

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  5. Oi Lu, depois das últimas cenas da cozinha, ela ficou com raiva do Henri e ao mesmo tempo com desejos. Esse mixi fez ela querer ser possuida por todos os mendigos num misto de dor e prazer, como num modo de deixar Henri chocado e desnorteado.
    Pelo pouco que já conheço do George, embora ele seja animal em relação a sexo, ele será gentil com a pobre Telma.

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  6. Ah, pessoal, como lamento estar sem net!!! Entrei rapidinho aqui no trabalho, mas acho que até domingo eu conserto isso.

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  7. Sei lá... Acho que o George vai ficar tão "oh meu Deus" por ter encontrado Telma dessa forma tão insólita que é capaz de ficar só a olhando dormir...

    Ou será que eu é que sou romântica demais? XD

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  8. Bidu, aí está a diferença. Estupro é uma violência não consentida. O que ela queria era ser possuída de forma selvagem, digamos. E como eu acho um ato abominável, fiz a resalva.

    aaahhh o cara agora está sem net... pode isso?

    Raven, nem sei se é pq vc está romântica, mas ele é meio banana não é não? :D de qualquer forma a pobre Telma precisa de um descanso mesmo antes de mais nada.

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  9. Concordo Luci, ela queria é fazer um festa com os mendigos.
    Quanto a Raven, acho que você é romântica e o George passa pela vida, ainda não se despertou.

    Lu, vamos fazer a festa porque o dono do Blog só volta no Domingo...rs..rs.......
    Podemos até dar uma ajudinha escrevendo o próximo capítulo...rs.rs........

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  10. ai ai ai viu? Bidu, vc está certo! vamos continuar escrevendo essa estória hahaha

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  11. Que lindo Syd... estou aqui, louca para saber o que rolou no apartamento de George.

    A dor de Telma é tão grande, tão pulsante. Pobre Telma, que sem auto estima, sem dinheiro, sem amor, conseguir ter a coragem de sair de casa.
    Que ela consiga ficar melhor, tadinha.

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  12. Fala sério sidneyy, nós aqui ansiosos para saber o que George vai fazer com Telma em seu apartamento bagunçado e sujo........e você some de vez???????????????
    Anda Dragão, cospe fogo e coloca essa estória para frente, ainda quero ler o livro completo, ou você acha que vai sumir assim sem deixar um grande legado, estamos aqui te esperando.

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  13. Preciso realmente pedir desculpas. Eu fiquei sem computador esse tempinho todo e pensei muito no blog e no quanto recebi de energia boa e motivação por aqui e no quanto reacendeu em mim a vontade q eu julgara perdida de me tornar um escritor. Peço perdão, sinceramente. Não tive culpa alguma, claro, mas me senti muito mal com o aparente descaso com o texto - dou minha palavra que pensei muito mais na tessetura de George do q no orkut/msn ou qualquer outro recurso da internet da qual fiquei privado. Bidu, se um dia George virar livro, isso será muito por consequência do apoio q vc deu ao frágil escritor q estou tentando ser (e tbm a todos os q apreciaram minha escrita, q ainda tem muito o q melhorar, mas q contou com uma motivação q poucas pessoas têm - por tudo isso, me sinto grato). Quanto a um de vcs escrever uma versão de um quadro de George, eu iria simplesmente adorar! Obrigado a todos vcs, meus amigos (acho q posso chamá-los assim).

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  14. Obrigado tbm a Mary Joe; amo vc!
    Obrigado a Luci por ser a amiga q sempre me apoio e obrigado a todos os q parecem gostar de George, q acabou assumindo uma importância maior no meu cotidiano.

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  15. Oi Dragão

    Que bom que vc voltou e contigo mais um capítulo de seu livro.
    Quanto a um dia George virar o personagem principal de um livro, não tenho dúvidas.
    Pode nos chamar de amigos sim

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  16. Simplesmente ótimo! Adorei!! Estou ansiosa pra saber como esta história vai desenrolar!! Se Telma vai virar uma adúltera, se vai abortar mesmo, se vai separar do marido e seguir a carreira de escritora junto de George que vai se transformar, inexplicavelmente, num misterioso e sedutor que fala obsceniedades em francês. hehehehe
    Parabéns!!!! Ficarei de olhooooo
    Beijos mil!

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