domingo, 28 de junho de 2009

Telma pede o divórcio pela terceira vez (Ou: George encontra Telma)


A mãe de Telma, dona Arminda, estava assando pãezinhos de queijo e não gostou nadinha da aparição súbita da filha com as duas crianças mais Bartolomeu naquela noite fria de junho. Passado o susto, ela, uma mulher eminentemente prática, voltou aos bolinhos e, enquanto passava as massinhas cruas nas mãos, modelando-as com fúria selvagem até que ficassem bem redondas, disse em tom sacerdotal:
- Tenho certeza que você sabe, querida, que o lugar de uma mulher é ao lado do marido. Não fica nada bem uma mulher casada apartar-se do esposo e sair às cegas a esta hora da noite. Vamos, reúna o que lhe restou de juízo e volte para casa.
E foi por isso que Telma, com as duas crianças e um Bartolomeu estressadíssimo retornou à estação de trem e tornou a voltar para casa, enquanto dona Arminda passou a chave na porta com um suspiro de alívio, agradecendo mais uma vez aos céus por seu próprio marido já ter morrido e lamentando por Telma, mas sabendo que com alguma sorte, ela também ficaria viúva mais cedo ou mais tarde e, de qualquer forma, ela não queria assumir nenhum tipo de compromisso - não agora que podia ir ao baile da meia-idade todas as tardes, além de jogar seu bridge com as meninas - Mafalda de 65 anos e Wilma de 72. Não. Definitivamente não permitiria que sua bem estudada paz fosse rompida por uma mulher jovem e infeliz com todos os seus fardos, ainda que esta mulher fosse sua própria filha. E aliviou a consciência ao lembrar que aguentara o falecido por mais tempo que poderia desejar sem que sua própria mãe fizesse qualquer coisa para ajudar. E se isso não foi o suficiente para aliviar o peso que lhe ia na alma, o bom vinho alemão que tomou em seguida o fez.
Enquanto isso, com o coração pesado e com a alma desacreditada na vida e no mundo, Telma entrou na sala de sua casa; mesmo do vestíbulo, era possível ver a figura altiva de Henri na cozinha. Ele comia um caqui. Comer um caqui para Telma era comer um caqui. Dá-se uma dentada na fruta e pronto. Mas não para Henri! Comer um caqui obedecia a todo um ritual de perfeccionismo como em tudo o mais na vida dele: com uma faquinha, ele descascava o caqui bem rente à superfície, colocando as finíssimas tirinhas de casca sob o formato de uma serpente adormecida no interior de um pires, enquanto cortava cada pedacinho do caqui, levandos-a à boca, um de cada vez. Estava em frente à pia da cozinha e não fez menção de se virar quando Telma e as crianças entraram.
- Papai! - Sophie invadiu a cozinha, correndo aos braços de Henri. - Estávamos na casa da vovó e fomos muito mal recebidos. Ela nos mandou embora!
- É verdade - disse Louis entrando após a irmã. - E mamãe nos mentiu que há uma guerra a caminho e que os turcos iriam nos matar a todos.
- É mesmo? - disse Henri com voz suave, dando beijinhos nas crianças e ignorando a presença de Telma, que entrou na cozinha e encostou seu corpo cansado no armário. - Vejo que viveram muitas aventuras.
- Nós fomos visitar a mamãe - falou Telma em um tom neutro.
Henri não respondeu. Seus olhos passaram rapidamente pela bagagem deixada no chão da sala, incluindo a casinha de viajar do gato.
- Muito bem, crianças. Agora, vão para o quarto. Preciso ter uma conversinha com a mãe de vocês...
As crianças deram um beijo de boa noite nos pais, libertaram Bartolomeu de seu confinamento e subiram em passinhos ligeiros a escada, comentando as últimas novidades do que lhes pareceu o dia mais excitante do ano.
Henri largou a faquinha no balcão e limpou os lábios. O relógio da sala tocou uma fina badalada indicando que eram oito e meia da noite. Telma aguardou.
O marido se aproximou dela. Começou a apalpar suavemente o pescoço de Telma. Acariciava, com suas mãos enormes, o pescoço, o rosto e os cabelos da mulher; surpreendendo Telma, ele abriu sua blusa e tirou um dos seios para fora, começando a sugar o bico como se fosse um bebê. Ela tentava timidamente escapar, sussurrar que parasse, puxar a blusa... ele continuou a sugar e então... e então ele parou. Fechou a blusa dela, olhou firme em seu belo rosto, ergueu bem alto a mão e (oh, Deus! Como me odeio por estar escrevendo algo assim!) desceu-a com toda a força na face de Telma, provocando um barulho inesperado na noite fria - e o cão da vizinha pôs-se a latir.
- Nunca mais, vagabunda, faça algo assim. Nunca mais!
Então, ele ajeitou-se, como se tivesse comentado com ela as oscilações do dólar. Passou as mãos pelo cabelo e disse no tom comedido e suave de sempre:
- E amanhã... livre-se disso! - apontou para a barriga de Telma e subiu as escadas em direção ao quarto.
O universo alargou-se. Ou, talvez, tenha iniciado seu movimento de retroceder. Sim, houve tempo para tudo isso. Ou talvez, não. Talvez fosse apenas um segundo longo demais. O fato é que Telma não se permitiu chorar. Ela apenas lembra de ter saído de casa. Com a bolsa que ainda estava em seu ombro e sem mesmo vestir seu casaco grosso de inverno, ela ganhou a rua. Todo o seu corpo pedia para chorar. Toda a sua alma negava este choro. Ela havia chegado no fundo do poço: agora só restava subir!
Telma nada sabia sobre fundos de poços, exceto que agora um deles era seu lar. Sabendo que sua alma só reconhecia a estação de trens, migrou para lá em passinhos rápidos, provocando uma ondulação de sons com seus saltos no saguão, agora rico em vagabundos miseráveis que esmolavam dinheiro, prostitutas baratas, bêbados e toda a fauna que Telma não conhecia, mas de cuja existência - ela que conhecia a dor - desconfiava.
Tomou um trem.
Sentou-se - não pensou seriamente em Henri; nem em si mesma ou nos filhos. No que pensou Telma? Ora, eu não sei! Não faço a menor ideia. Ela pensou em algo muito banal, como, por exemplo, em como a alma se separa do corpo após a morte e porque não o faz agora mesmo? Talvez fosse tudo mentira, ela pensou, os olhos secos, fitando o vazio. Um homem feio e sujo a fitou com uma espécie asquerosa de desejo. "Tomara que ele me mate", pensou Telma. Mas não queria - não agora! - tornar-se uma vítima medonha de si mesma. Olhou friamente para o homem e desceu.
Não sabia onde estava. Sabia apenas - e muito remotamente - que descera em um lugar bem próximo da casa de Henri (nunca mais seria sua casa! Era a casa de Henri ou a casa das crianças, mas não a dela: a dela era o fundo do poço!).
(Também não sabia, é claro, que estava muito, muito perto da casa de George).
Saiu da estação. Observou o bairro tão próximo ao seu. Prédios e prédios e prédios. Havia muitos estudantes por ali - um reduto de universitários, provavelmente.
Ela observou tudo: os prédios brancos, os bancos de praça espalhados aqui e ali; as velhinhas que recolhiam seus cachorros após tê-los levados para se aliviar na grama. Ela via e registrava - e sentiu uma imensa inveja de quem quer que fosse que vivesse nas redondezas. Qualquer que fossem os problemas daquela gente, pensou Telma, nenhum deles tinha um marido horrível com dois filhos que pareciam não amar a mãe e com um pequeno futuro assassinado na barriga.
E, de repente, ela, que já conhecia a Telma Boa e a Telma Má, conheceu também a terceira Telma: a Telma Louca. Isso porque, subitamente, como uma onda que brota do nada, ela desejou que os mendigos a estuprassem. E que depois a matassem - sem muito sofrimento, por favor! Apenas uma paulada certeira na cabeça - nada de muito sangue, sim? Ainda possuída pela Telma Louca, ela foi se encaminhando para o banco em frente ao prédio de George; e sentou-se ali; e reclinou-se até deitar-se de fato; e esperou que a Morte viesse; e adormeceu - apagou-se como uma velha lâmpada.
A porta do edifício abriu-se, e um rapaz apareceu trazendo o lixo. Seus olhos viram uma moça deitada sobre o banco - o que uma moça bem vestida e bonita estaria fazendo deitada em um banco público? George calculou que ela estava passando mal ou era uma bêbada. Curioso, aproximou-se.
E percebeu, ainda à distância, que aquela, outra não era, senão a Mulher do Trem! Mas não era possível! ... No entanto... Sim! Era mesmo ela! Era ela sem dúvida! O coração de George contraiu-se ao tamanho de uma ervilha e ficou pesado como chumbo, enquanto dava saltos verdadeiramente mortais dentro do seu peito, ao ponto dele pensar pela primeira vez: "Vou morrer!". Mas não deu grande importância à morte. Nem ao vento que espalhou o lixo que ele foi largando pelo caminho. Nem ao avião que passou provocando barulho, os aos cães dos vizinhos, ou aos gritinhos das crianças do prédio. George não viu nem ouviu nada disso. Todos os seus sentidos estavam presos à mulher do banco que lhe confirmaram: sem dúvida, era a mulher do trem! George - que muito raramente também era capaz de alguma lucidez - olhou para todos os lados e percebeu rapidamente que ninguém o olhava ou estava interessado na mulher do banco. Ele se lembrou do quanto aquela cidade era fria, ao ponto de chutarem um cadáver se lhes aparecesse algum atravacando-lhes o caminho. George fez que sim com a cabeça. E para o quê George fez sim? Vou saber! Não tenho a mais pálida ideia. Sei apenas que, sem pestanejar, George enfiou os braços sob o corpo da mulher e, tomando-a no colo, levou-a para seu apartamento.

sábado, 27 de junho de 2009

George desconfia que ninguém gosta dele


Na sexta-feira, os colegas de escritório onde o pobre e querido George trabalha sempre marcam alguma coisa para depois do expediente. Ora, é um jantar na casa de um, ora é uma festinha na casa de outro. Ou vão para o bar. Ou para o bilhar. Ou para a gafieira. Ou para a danceteria. George é sempre excluído, mas não sabe porque em sua natureza boa e gentil ele parte do princípio que todos o amam. Há uma sutil desconfiança em sua alma infantilizada de que não é bem assim, mas ele afasta esta desconfiança com um gesto jovial: todos o amam - incluindo seu chefe - e por que não o amariam se ele é educado, simpático e faz as coisas que se deve fazer, incluindo não pisar na grama nem deixar de contar boas piadas sobre portugueses, gays e papagaios? (Não que cheguem a rir de suas piadas, mas sorriem e, se logo pedem para que ele faça algo, como escrever um email, não é, certamente, para livrar-se dele, nem nada indelicado.) Mas ele ficou muito chateado quando viu alguns colegas combinando assistir o final do campeonato do time de George e não estenderem o convite a ele. Isso deixou uma marca indelével no rapaz e ele se vingou ficando em silêncio o resto da tarde - o que não surtiu o menor efeito. Contudo, na semana seguinte, uma moça muito bela chamada Josephina foi contratada para trabalhar no mesmo setor de George, e a entrada dela no local logo provocou uma intensa energia magnética, com os homens se ajeitando, empertigando-se ou simplesmente trocando olhares subreptícios e com as mulheres olhando fixa e geladamente para a moça em questão. O primeiro, porém, que a convidou para ir ao bar "pois passavam uma música ao vivo ótima, com uma judia do Bom Fim cantando Janis Joplin maravilhosamente", recebeu uma gélida negativa da nova funcionária, o mesmo sucedendo com o segundo colega, que a convidou para jantar em um aconchegante restaurante italiano - convite que ela considerou indelicado porque os homens deveriam adivinhar quando uma mulher está em dieta, como era o caso dela, apesar de ser tão magra que parecia que iria desabar a qualquer momento. Finalmente, estarrecendo a todos, ela aceitou o convite do querido George! Ele a convidou para assistirem juntos a ópera onde estavam apresentando Mme. Butterfly. "Sim, por que não?" disse a jovem, e George voltou todo bobo para casa.
(Ah, como é doloroso escrever que a mulher não compareceu ao local do encontro deixando George parecer mais idiota do que nunca por quase duas horas em um barzinho onde havia um televisor ligado mostrando como os leões se acasalam! Fingindo grande interesse pelo que aparecia na tela, George saiu dali desconfiado que a vida é uma pequena porcaria, muito semelhante àquela feita pelos cães e que, agora que ele deixou o bar, grudou-se fixamente em seu sapato, quando ele decidiu, em cândida revolta, insultar o sistema e pisar jovialmente na grama.)
O fato é que a moça não foi. George comprou pipocas e decidiu ir a um bordel. Em sua concepção de mundo, ele acha perfeitamente normal pagar uma moça para aliviar suas necessidades, quando não encontra uma alma que o faça prazeirosa e gratuitamente. Enquanto caminhava pela cidade, que à noite parecia enganadoramente pacífica, George viu um grupo de homossexuais assoviando para ele. Apenas riu: não acreditava que um homem pudesse gostar de outro, aquilo deveria ser apenas um engano ou um problema nas amígdalas! Ele terminou de comer a pipoca, entrou em um táxi e foi direto para o Accueil, uma casa de tolerância de uma dama francesa ou canadense, amiga íntima de George. E quando descobriu que não havia nenhuma moça disponível, não estranhou. E quando perguntou à madame por que tudo dava sempre errado para ele, ela, de maneira maravilhosa, serviu-lhe um conhaque, e explicou-lhe (era uma mulher muito sábia) que, quando esperamos com ansiedade algo do mundo, o mundo nos dá o contrário; mas, quando apenas entregamos nossas vidas ao universo, de forma confiante, retirando a ansiedade do caminho, o universo nos dá exatamente o que nossos corações precisam. Encorajado por estas palavras, George contou a ela tudo sobre a Mulher do Trem. Madame sacudiu maternalmente a cabeça. Era uma mulher muito prática e se recusava terminantemente a acreditar em amor à primeira vista. No entanto, ela era também uma médium razoável, e de repente teve um sinal, uma graça ou dom oriundo dos céus. George ficou muito sério e empertigado e madame disse a ele que, em breve, uma mulher surgiria em sua vida - e era por isso que o universo impediu Josephina de comparecer ao encontro. George ficou muito feliz e fez aquela cara de carneiro doente que tanto me irrita. Mas madame apressou-se em explicar que a mulher em questão era uma verdadeira sacola de problemas! "Ela afetará sua vida de várias maneiras, meu bem! Seu mundinho ficará todinho de cabeça para baixo!" George disse que não tinha importância. Disse que a queria assim mesmo. Disse que era melhor uma mulher que virasse sua vida de cabeça para baixo, do que não ter mulher alguma." Madame não sabia se concordava ou não. Ela estava na fase em que viver sozinha é sempre preferível a cultuar aborrecimentos - mas ficou quieta, como convém a uma cafetina de respeito. George, animado pelas revelações mediúnicas de madame, perguntou, ainda mais uma vez, o que poderia haver de errado com ele, que todas as mulheres logo se afastavam tão logo o conheciam. Encorajada pelo segundo conhaque, madame disse a George que a causa poderia estar em seu perfume francês - que era muito forte, intimidador e fazia com que se sentisse um desesperado desejo de abrir todas as janelas do mundo. O pobre George deu uma cheiradinha na própria axila, caindo em uma imediata melancolia. E, enquanto sonhava com a insólita dama que o universo estava prestes a enviar a seus braços, concordou interiormente em mudar de perfume.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Telma pede o divórcio (por três vezes)


A pobre e querida Telma não é o tipo que pede o divórcio, mas o fez. Há sempre o momento em que o camelo sente sede. Da primeira vez, Telma disse: "Quero o divórcio. ", Henri respondeu: "Não.", e o assunto terminou por aí. Ela ficou ruminando aquele não e se perguntando em como as mulheres à sua volta pareciam ser tão facilmente agraciadas com o divórcio, enquanto ela recebia apenas um não seco, categórico, definitivo...

Da segunda vez, ela não o pediu, mas saiu de casa, o que era um pedido implícito. Aproveitando que Henri ainda estava na fábrica, ela mandou as crianças tomarem o banho, enquanto colocava prioridades em pequenas bolsas e sacolas, escolhendo cuidadosamente apenas o que poderiam levar, ações estas que apavoraram as crianças, enquanto a mãe sublinhava a estranheza de suas atitudes com pedidos de "Depressa, depressa... Vocês não estão sendo rápidos o suficiente! Vamos, crianças, depressa..." Isso de tal forma criou um novo e feio mundo nas almas das crianças, que eles apenas se olhavam e choramingavam; mas a mãe parecia ter algo de muito urgente em mente e como não era boa em conversas, resolveu mentir: "Os iraquianos estão vindo aí! Os muçulmanos nos matarão a todos ! O mundo está em guerra! Vamos, crianças, ajeitem-se, levem apenas o prioritário, apenas o que pudermos carregar, porque vamos fugir, e vamos fugir de trem..." "Posso levar minhas figurinhas?" Isso pareceu prioritário a Louis, mas a mãe nem respondeu, enquanto Sophie deixou bem claro que não sairia dali sem Bartolomeu, seu gato de estimação, nem sem suas quatro bonecas e suas panelinhas. Sempre sussurrando depressa, depressa, agora mais para si mesma, Telma tomou fôlego e, além do fôlego, tomou também alguma coisa meio branca que não pude ver bem, apesar de ter esticado ao máximo meu pescoço, mas suspeito que seja valium (danadinha!) e negociou com as crianças: Sophie poderia levar duas bonecas - quatro era um exagero em mundo prestes a sucumbir a uma terrível guerra, com todos aqueles iraquianos de turbantes e adagas afiadíssimas castrando os rapazes, matando as mães e tirando - ela olhou bem fundo para Sophie, pois a menina tinha uma personalidade forte e carecia de imagens intensas - toda a coletânea de tripas que as mocinhas têm no seu interior vazio e fútil pelo acúmulo de bonecas. Como isso os demoveu, ela conseguiu terminar a fuga com mais rapidez e menos perguntas, embora as crianças tenham ficado traumatizadas para sempre. Louis ainda tentou argumentar sobre a possibilidade de fazerem algum pacto com Bin Laden, sugestão que deixou Telma muito assustada, pois era sem dúvida algo que Henri diria se tivesse nove anos. E ela que sempre acreditara que Louis saíra à mãe...

- Depressa, depressa, crianças, não temos um segundo a perder, os judeus estão vindo aí ! Vamos logo com isso!

Louis estacou vivamente:

- Judeus? Mas não eram muçulmanos?

Ela virou o rosto quente para a janela e puxou o pó-de-arroz da bolsa, fingindo uma naturalidade que, horas depois, pensando no assunto, surpreendeu-a - pois percebera que uma outra Telma - mentirosa, manipuladora, traiçoeira - convivia ao lado da Telma conhecida, cordata e prudente.

- É tudo a mesma coisa, querido!

- Mamãe... - era Louis novamente - para onde exatamente estamos indo?

- E onde está papai? - perguntou Sophie, que amava profundamente aquele canalha sem alma.

- Sem perguntas! Os homens estão vindo aí e...

- Que homens? - Louis largou a bolsa com algumas roupas, sua bola de futebol, suas chuteiras e seu homem-aranha de borracha sobre o sofá. Deixava bem claro, pelo gesto - que também lembrava Henri! - que não iria sair dali sem boas explicações.

- Os turcos! Eu cometi um engano. São os turcos que estão vindo aí para nos matar a todos, e não os judeus nem os iraquianos. Agora, chega de conversa. Já perdemos três trens. Nós vamos todos para a casa da vovó.

- Não seria mais simples, mamãe - disse Sophie com surpreendente sabedoria - você nos informar apenas que estamos indo para a casa da vovó?
(Não, Telma não pensara nessa possibilidade; o caminho complicado parecia ser o único, e quando se pensava no mais simples - suspiros universais pela humanidade! - era já tarde demais!).

- Há mesmo uma guerra a caminho? - perguntou Louis. Parte dele temia a guerra e todos os seus negros horrores, mas uma parte muito remota, que ele apenas agora conseguia roçar com sua consciência, anseava por um conflito dessa espécie e sua participação - ainda que ínfima - no mesmo.

- Eu prometo explicar tudo na casa da vovó, se vocês prometerem não fazer mais nenhuma pergunta e apenas me acompanharem.

Os dois irmãos trocaram um olhar e imediatamente aquele magnífico campo de energia telepática surgiu entre eles:

"Sim, vamos fazer o que a tola quer! ". dizia o olhar de Sophie. "Certo, respondeu os olhos azuis de Louis, afinal nada mais simples do que voltarmos para casa depois que entendermos toda essa grande trapalhada.

As crianças entraram em um bem comportado silêncio, e tudo foi preparado de acordo com a vontade de Telma. Com Bartolomeu resmungando dentro da casinha de viajar, aquela pequena família entrou no trem.

sábado, 6 de junho de 2009

O Apartamento de Solteiro de George


O apartamento de solteiro de George era exatamente como alguém poderia imaginar que fosse o apartamento de solteiro de George. Foi insinuado que George vivia no mundo, mas não o percebia. Ao contrário de Telma que o percebia, mas fugia do mundo. Ambos eram convencionais, mas suas convenções eram diferentes: enquanto Telma expunha uma bem comportada máscara de dona de casa exemplar, navegava em uma vasta e rica vida interior. George, pelo contrário, não tinha vida interior nenhuma (mas será justo afirmar isso?) O fato é que o pobre George tentava desesperadamente ser o que o mundo esperava dele - e acreditava que correspondia a isso. Se era inverno, ele ficava resfriado - pois acreditava que era isso o que se faz no inverno: fica-se resfriado. É claro que se era verão e ele estava em férias, calçava suas ridículas botinas amarelas e ia pescar. E meu coração se enche de ternura ao imaginar George com suas botinas amarelas, sério e duro como uma estátua de uma tragédia grega na beira do rio, à espera dos peixes que inadvertidamente caíam em seu anzol. E se era outono, ele comentava o quanto amava o outono e que essa era sua estação favorita e nem lembrava mais porquê; é que ouvira alguém dizer isso no metrô e pareceu-lhe adequado, de forma que ele repetia isso há quase seis anos. É claro que ele fazia tudo o que acreditava que se deveria fazer. Era uma ovelha. Não sabia lutar. Não lutaria se o soubesse. Toda a sua vida era marcada por convenções e a isso se adiciona também uma paciência inacreditável para as coisas que George avaliava como 'o mundo', tudo perfeitamente preenchido e sem espaço para reticências. Ele até mesmo era simpático com as devotadas testemunhas de jeová que invadiam seus domingos para a pregação domiciliar (e com isso tiro qualquer suspeita de que George possa ser, na verdade, eu mesmo). Embora fosse católico e considerasse todas as outras religiões falsas e frutos da ilusão humana, tanto que ia à missa todos os domingos e até fazia parte do coro (tinha uma linda voz que parecia ferir a igreja com notas graves e profundas, quase como se um delicado mamute estivesse flutuando pela atmofera fluídica do templo), não pensava seriamente em Deus ou em religião. Não que fosse ateu! Não tinha profundidade para ser ateu. Mas acreditava que Deus estava à espreita, não dele, pálida formiga, mas dos outros - os homens maus, os perversos, os que transgrediam as regras e sonegavam os impostos - George jamais sonegaria um imposto! - e é provável que Deus também estivesse atento às freiras, aos padres, aos iluminados desse mundo, às solteironas piedosas e aos que pareciam dizer coisas importantes. Não a ele, claro! Ele era apenas um homem bom, apaixonado por uma mulher que seria dele - disso George não tinha dúvida: ela era perfeita, solteira, romântica, não fumava e gostava de vinho e, com alguma sorte não conhecia homem algum! Assim, aos domingos, George ia à igreja e depois comprava vinho e alguma carne que assava sozinho na churrascaria de seu prédio, voltando em seguida para seu apartamento de solteiro, tão parecido com ele mesmo que era quase impossível imaginar que outro, que não George, vivesse naquele lugar: havia o sofá, tomado de manchas de café e algum esperma - pois é claro que George se aliviava diante da televisão e espalhava sua vitalidade no sofá - e o que mais poderia fazer o pobre diabo? E seu quarto estava sempre bagunçado porque ele só o arrumava quando tinha certeza que traria uma moça para casa - o que raramente acontecia porque havia alguma coisa em George que às mulheres não agrava - talvez o nariz que acusava uma leve descendência judaica ou aquele ar de quem pede perdão ao mundo por respirar. Não sabemos! George era apenas George, uma pobre criatura. Seu quarto, portanto, vivia em desordem, com os lençóis espalhados e papéis soltos por toda a parte, tantos e tantos que George nunca encontrava alguma coisa quando precisava dela, encontrando-a apenas muito tempo depois, quando ela não era mais necessária. E nesses momentos - apenas nesses momentos - George tinha certeza absoluta que Deus prestava atenção nele: é que Deus, calculava George, ria-se às lágrimas enquanto George procurava uma conta de luz perdida ou um relatório. Ele tinha certeza que os papéis estavam aqui, e certamente estavam aqui, tinham que estar... mas não estavam. Nem aqui nem ali nem em parte alguma. George se irritava, o Senhor ria, sacudindo suas divinas banhas e tornava a rir novamente quando George reencontrava os papéis perdidos. Nesses momentos, ele acreditava profundamente em Deus e na divina necessidade de se divertir um pouco com Suas criaturas.


A cozinha de George era mais arrumadinha. Isso porque o rapaz tinha uma vizinha muito gorda e praticamente uma guardiã da vida de todos do condomínio. A cozinha de George dava exatamente para a sacada da gorda e ele não desejaria que ela pensasse que ele vivia na desordem. Assim, para aplacar os ânimos da robusta senhora, George mantinha a cozinha asseada e no cantinho superior da janela havia um pano de prato com letras cursivas bordadas: 'sexta-feira'.


O banheiro de George... eu não entraria naquele banheiro! Lá havia um cheiro estranho que eu não ouso comentar porque sou elegante demais. As bactérias pululavam por lá - mas George era muito cético quanto à existêrncia de seres que ele não poderia ver. E eu já vi George mais de uma vez com um chinelo na mão perseguindo uma barata, que sempre era mais esperta do que ele e conseguia fugir, deixando-o olhando para todos os lados, o que acentuava muito seu ar de débil mental. Ah, o quanto George me irrita nessas ocasiões!

Havia também um cesto enorme de papel higiênico e, ao lado do cesto (a origem de todo aquele fedor, por certo!) ele mantinha uma bem equipada cesta cheia de revistas de mulheres peladas, algumas em pleno ato. George era extremamente sexuado. Creio que, nessas alturas, todos já perceberam sua profunda animalidade. Ele próprio não a percebe, pois é apenas vago e inocente e acredita que todo aquele furor sexual é parte natural de todo homem. (Talvez ele tenha razão, eu não entendo nada de homens, embora seja um deles).


Recuso-me a descrever a pequena sala onde George mantinha seu computador, além de outras coisas. Ele chamava este espaço de 'escritório'. Ali havia o livro de PÍPPI MEIALONGA, que era a obra favorita de George. Também havia outros livros, alguns bons e outros ruins. Ele lia A ESCRAVA ISAURA e se derretia por causa da heroína, sempre visualizando-se como alguém que salva Isaura das garras pérfidas de Leôncio. Por fim, os cds. George gostava muito de música e mantinha seu rádio ligado em uma estação de blues - isso porque todos os cds estavam em capas trocadas ou as capas estavam vazias e ele raramente encontrava o que queria. Por que recuso-me a comentar mais o 'escritório' de George? Porque ali, diante das coisas que tanto lembravam o próprio George, é onde eu sinto maior identificação com esse pobre ser. A ideia de ser o próprio George me ofende! Ao ver seu computador, seu porta-lápis e suas revistas em quadrinhos - algumas contendo todas aquelas indecências dos japoneses de olhos enormes - eu desconfiei que pudesse ser ele mesmo. Fiquei aterrorizado e saí do quartinho, fechando cautelosamente a porta. Não, não, obrigado. Já tenho trabalho demais em ser eu mesmo.

E George pensa que nunca vai morrer. Isso o afasta definitivamente de mim. George acredita que a morte é um evento importante demais para acontecer com ele. Isso é para os estranhos, talvez para a vizinha, para o colega de trabalho, para os outros, apenas para os outros. Quanto a ele, viveria para sempre, casaria com Telma, teria seis filhos e um dia plantaria uma linda árvore, uma seringueira, e todos os seus filhos bateriam palmas e reconheceriam em George uma graça e uma grandiosidade que até então o mundo lhe negara.