terça-feira, 7 de julho de 2009

O Despertar de Telma (ou: Pede Para O Motorista Abrir A Porta Porque Eu Quero Descer)


Eu adoraria dizer que George deitou-se ao lado de Telma, e tudo mergulhou no sono por dois ou três séculos. Eles, então, acordariam revitalizados e risonhos, George tomando uma vitamina com leite condensado, peras e quinze ovos de codorna, e Telma mordiscando uma delicada torrada e bebericando chá, enquanto perguntaria, repetidamente, entre risadas e tapinhas cúmplices no parceiro: "Como foi mesmo que isso tudo aconteceu?".
No entanto...
Telma arregalou os olhos e olhou em torno. Estava em um apartamento estranho, a decoração não a agradava e alguma coisa em seu comportamento recente censurava-a violentamente - restando a ela apenas descobrir o quê.
Ela abominou o pôster de Che Guevara fitando-a em preto e branca e deplorou a colcha azul metálico com bolinhas brancas e a pequena estátua feminina de cabeça minúscula e seios imensos ao lado da luminária branca sobre o criado-mudo - iluminária que logo a fez sentir saudades de seu abajur Tiffany, sob a luz do qual ela tecia grossas luvas de lã para as crianças.
As crianças!
Seus filhos!
O mundo!!
E ela em um apartamento estranho...
(Sua saída abrupta na noite enganadoramente pacífica... seus passos ainda ecoando no saguão - ela sabia que sua alma assombraria para sempre a estação do trem, mas isso não deveria ficar para mais tarde? Seus pensamentos vulcânicos... Oh, não deveria pensar nisso agora! Culpou, então, a Telma Louca! Por que ela - a Telma Boa - ouvira a Telma Louca e adormecera - entrara em profundo torpor! - sobre um banco público?).
Estacou ao ouvir um barulho na cozinha.
Apurou todos os seus sentidos e observou em volta na esperança de encontrar um machado convenientemente ao alcance.
E, então, George entrou no quarto com uma sopeira fumegante - eis que ele fizera canja de arroz.
- Eu espero que você me liberte em menos de um minuto - disse a voz clara e fria de Telma.
George à porta.
- O que foi que você fez, seu idiota? - perguntou a voz.
E George assoprando levemente uma colherada da canja: ele provou um pouquinho da canja e julgou-a muito boa.
- Eu quero ir embora - disse a voz.
E o pobre e querido George compreendeu que aquela não era a Mulher do Trem. Era apenas uma moça carregada de rancores, os sulcos dos desgostos que agora cavavam-se em torno dos seus lábios e dos olhos furiosos, além de uma pele corada, bem distante da poética palidez que tanto o atraíra na Mulher do Trem testemunhavam: aquela moça era apenas um simulacro de sua musa. Era uma mulher comum, uma sombra que ele tomara pela coisa mesma, e não era, de forma alguma, a Mulher do Trem.
Mas ele a trouxera para dentro de sua casa!
Ele se envolvera...
(E eu olho de um para o outro, poisa agora já os reconheço e sinto a tentação de provocar um terremoto, lançar um para os braços do outro; Telma diria: "Oh!", George também diria: "Oh!", e os dois correriam pela cidade, atravessaria túneis e, passado o susto, seriam felizes para sempre, ele engordando um pouquinho, ela molhando as samambaias e ensinando canções folclóricas da Bavária para ele, pois domina o alemão, língua que George suspeita ser impossível de falar sem escarrar...)
Mas nenhum terremoto veio ferir a solidão abissal de suas almas.
Telma levou a mão para baixo da colcha em busca de uma possível violação em seu corpo: tudo parecia seco e intacto.
- Você estava mal. Eu a trouxe para cá e cuidei de você.
- Sei ... - disse Telma.
- E fiz canja - continuou George.
- Foi muito gentil de sua parte - disse Telma.
- Você quer que eu chame um médico? - perguntou George.
- Eu penso - disse Telma, aprofessoradamente - que isso era o que você deveria ter feito antes. Mas, não, não precisa, obrigada. Eu realmente tenho que ir embora.
E ela saiu da cama - e não pôde deixar de perceber que o rapaz fora tão delicado que nem ao menos a despira, tirando-lhe apenas os sapatos, que ela encontrou com uma única e certeira pesquisa com os olhos pelo quarto.
- Você me parece o tipo de homem que gostamos de ter por perto em uma emergência - Telma sentiu necessidade de comentar. Parte dela estava em dúvida se deveria ou não dar algum dinheiro a George pela sua boa ação.
- Na verdade, eu a confundi com outra pessoa - disse George. E, movido por um estranho instinto (ou por uma necessidade terrível de vomitar o que lhe ardia o espírito) contou tudo a Telma sobre a Mulher do Trem.
- Que fascinante! - disse Telma. Ela começava a pensar em George como um interessante animal.
Enquanto contava sua história, George foi à cozinha, apanhou dois pratos e talheres e instalou a sopeira e um cestinho de pãezinhos torrados na sala de jantar, que compartilhava o mesmo espaço da sala de estar. Também fez tocar um blues - eu acho que foi Eric Clapton ou algo assim.
Tacitamente, ela o acompanhou à cozinha e sentou-se com ele na sala de jantar, interrompendo a história apenas para dizer: "Oh!", ou: "Ah!", ou: "Mas que coisa!".
Depois disso, os dois comungaram da canja.