quinta-feira, 28 de maio de 2009

A Luneta de George



Quando viu a moça do trem, George utilizou sua luneta capaz de fazer enxergar as coisas em proporções irreais. Na verdade, a mulher não era assim tão bela. Sua testa era larga demais e suas mãos eram grandes, ainda que femininas, mas não pareciam pertencer àquela jovem senhora. O ar de mistério da dama não passava de miopia - toda sua beleza celestial desaparecia tão logo ela metia os óculos à cara. E o que dizer da palidez que tanto atraiu nosso bom amigo? Pura falta de ferro! Como sofria de gases, a mulher do trem evitava feijão; a falta do importante grão causava carência de ferro; a carência de ferro levava-a àquela palidez que tão bem lhe caía, tornando-a uma dama misteriosa, carregada de beleza lírica, quase uma personagem de alguma tragédia grega. Subtraindo tudo isso, o que restava à Telma, sendo esse o nome da misteriosa dama do trem? Uma mulher comum, um ser humano em conflito, uma buscadora. Ainda restava, portanto, algo que valesse a pena, embora eu esteja certo de que George sentir-se-ia insultado e provavelmente insistiria na beleza incomum, na romântica palidez e no ar de mistério. Pobre e querido George! Por que não, se lhe convém?


Telma desceu do trem na estação seguinte à de George. Desceu e imediatamente tomou outro em direção contrária, descendo novamente no ponto de partida em que tomara o primeiro trem. Não tem, então, outra coisa a fazer essa senhora, além de tomar inutilmente trens de um lado a outro? Ora, mas faça-me o favor!


(e agora ocorreu-me que me comprometi com toda essa merda e terei que, forçosamente, dar um sentido a isso, organizar o kaos, pôr disciplina nessas duas criaturas, fazer algo, em suma! Não adianta nada me refugiar em um picadinho de vagem, nem dormir a tarde toda ou fingir que não tenho algo com isso, porque tenho algo com isso e só me resta tomar um café bem preto e forte e continuar, continuar, continuar...)


Telma morava em uma casa não muito distante do apartamento de solteiro de George. Sua casa e sua vida eram muito tradicionais. Ela era casada e tinha dois filhos. O marido, Henri, trabalhava como executivo em uma empresa que vendia uma dessas coisas perfeitamente supérfluas, mas das quais não abrimos mão e ganhava um bom dinheiro. O filho e a filha eram muito bonzinhos, meninos de oito e nove anos. Louis era louro e tinha olhos estúpidos e azuis e Sophia estava determinada a ser perfeita. Ambos iam à escola, tomavam aulas de canto e jamais se sujavam ou se metiam em brigas. A casa em que viviam parecia-se com um chapéu biforcado de bruxa e tinha um olmo plantado bem à frente. Subtraindo esses detalhes pitorescos, eu diria que eram todos muito convencionais, e se você os visse, eu apostaria meu marcador de páginas como diria: "oh, que bela família!" De fato, uma bela família. Na superfície. No subsolo, cresciam silenciosamente os tentáculos de velhos vegetais venenosos. Raízes de plantas letais alargavam-se e se encontravam, emaranhando-se, vinculando-se, liberando mucos tenebrosos e ameaçando invadir a paz da superfície com suas gigantescas garras pontiagudas. Todo um mundo jamais mencionado habitava o subterrâneo e era outra a linguagem que este mundo - mais primitivo e honesto - falava. Telma não estava contente com a sua condição. Ela sonhara a vida inteira em ser uma escritora de muito sucesso e talento. Escreveria histórias fantásticas, transformadas em cinema e em merendeiras e adesivos e cadernos e histórias em quadrinhos. Ela lecionaria literatura por algum tempo, e, então, uma importante editora descobriria seu inacreditável talento. Todo o planeta leria seus livros e reconheceria sua qualidade de escritora, digna dos melhores prêmios de literatura. E, quando questionada pelos jornalistas, Telma assumiria o ar grave e entediado dos escritores e diria que jamais em sua vida sonhara com aquela fama, nem pensara seriamente em se tornar uma escritora. Isso era o que ela diria, para parecer mais interessante. Ela viveria em um casarão na Suíça, teria oito gatos, seria extremamente rude e temperamental - como convém a uma escritora com todo aquele talento! - e se recusaria terminantemente a dar entrevistas, quando, então, abriria uma exceção e surpreenderia a todos, enriquecendo um jornal da noite para o dia pelo simples fato de ter emprestado a si mesma por alguns instantes.


Outra coisa bem diferente viera a suceder. Ao terminar a faculdade, Telma conheceu Henri e imediatamente aceitou seu pedido de casamento - talvez por ele ser louro e ela estar embuída na crença de que todo louro possui um coração carregado de bondade (não leu a história da Alemanha, pobrezinha). Henri casou com Telma, trancafiou-a na casa do chapéu bifurcado, plantou um olmo e lhe fez dois filhos. O destino de Telma estava traçado: ela acordaria mais cedo que todos, faria o café da manhã, chamaria a família para o mesmo, levaria os filhos para a escola, pagaria contas, faria compras, cozinharia, lavaria, passaria, branquearia os lençóis, levaria o gato no veterinário, ajudaria as crianças nos deveres de casa, pregaria botões, cuidaria do jardim, enceraria o chão furiosamente, arranjaria as flores em um vaso e, nas férias, sorriria meigamente por cima da novela policial enquanto pediria silêncio às crianças por que papai quer ver o último jogo importante na televisão - e quem poderia culpá-lo? Ele trabalha tanto!


E agora, quando consegue reunir coragem para pedir o divórcio, quando finalmente dá a si a chance de acreditar que poderia mudar sua vida (não posso deixar de mencionar que ela andou visitando uma cartomante. Ah, as mulheres!) eis que ela descobre que está grávida novamente. Pobre Telma! E quando ela comunicou o fato ao marido, ele falou, em um tom que me pareceu seco: "Por que você não se cuidou?" Isso preencheu Telma com uma vívida indignação. E foi por isso que, naquela fatídica manhã de segunda-feira, George a encontrou em um trem, olhando para o Nada (o que provavelmente acentuava o ar de mistério outrora mencionado) e refletindo sobre todas as escolhas que ela não fizera. Não posso fazer nada por George - ele já está apaixonado. Quanto a Telma, nem ao menos o viu. E eu, que a criei, duvido muito que ela fizesse algum movimento em direção a ele, caso o tivesse visto.




domingo, 24 de maio de 2009

A mulher do trem



Houve que um dia George acordou mais tarde e perdeu o trem e como era segunda-feira ele logo imaginou que não deveria se sentir mais feliz por isso. Mas nada havendo a fazer, ele o fez: tomou outro trem. E de maneira vaga e instintiva ele compreendeu que perder aquele trem era algo conspiratório, religioso, típico de uma lei cósmica que ele apenas tateava. Pois deu-se que, ao ver um trem passar no sentido contrário ao dele, quando ele já tinha descido na estação e ia para o escritório, ele viu uma mulher dentro daquele trem oposto ao caminho dele. E como era uma mulher linda e pálida e tinha um olhar de mistério, e como ele perdera seu próprio trem em uma segunda-feira, ele compreendeu que havia na questão uma beleza que só pode ser atribuída ao universo, pois aquela mulher, tão linda e rodeada por um mistério, só poderia, assim pensou George, ser a mulher da vida dele - ou ele não teria perdido o trem em uma manhã de segunda-feira. Isto lhe pareceu lógico e justo. Ele sentiu um frio gostoso e excitante no estômago e preparou-se para tomar um café no bar fedorento da esquina, ainda que isso o atrasasse mais ainda aos seus deveres; conhecer a gêmea chama de sua vida pareceu-lhe mais importante que cumprir seus deveres, e era quase de mau gosto ir trabalhar depois de ter visto uma mulher dentro de um trem e compreender que esta mulher é a mulher de nossas vidas. Muito feliz com sua própria dedução, George entrou no bar, pediu um café horrível e requentado e doce, tomou-o com uma inacreditável e quase religiosa satisfação e perguntou-se, em meio ao emaranhado confuso de suas ideias como ele faria para reencontrar a fina dama que ele avistara por um único e letal segundo de sua vida e que era - sem nenhum tipo vulgar de dúvida - o perfeito acabamento que a natureza dera à sua alma, até então desencontrada de si mesma e confusa - sim, muito confusa, pois lhe faltava algo que a ele era desonhecido, mas que agora lhe era anunciado como uma sonata de mil anjos: ele saía de um estágio e entrava em um outro; e ao repassar mentalmente a beleza misteriosa da dama belíssima que ele vira no trem, George soube agradecer pelas segundas-feiras de atraso, pelos cafés horrivelmente doces e pelo próprio destino que agora se fazia tão cheio à sua cara como um pão caseiro de uma avó escrupulosa. Bebendo com prazer seu último gole do horrendo café, George perguntou-se quanto custaria um detetive - pois também de coisas práticas é feita a vida, além de finas damas que atravessam nossas vidas em um trem que viaja no sentido oposto ao nosso.