sábado, 6 de junho de 2009

O Apartamento de Solteiro de George


O apartamento de solteiro de George era exatamente como alguém poderia imaginar que fosse o apartamento de solteiro de George. Foi insinuado que George vivia no mundo, mas não o percebia. Ao contrário de Telma que o percebia, mas fugia do mundo. Ambos eram convencionais, mas suas convenções eram diferentes: enquanto Telma expunha uma bem comportada máscara de dona de casa exemplar, navegava em uma vasta e rica vida interior. George, pelo contrário, não tinha vida interior nenhuma (mas será justo afirmar isso?) O fato é que o pobre George tentava desesperadamente ser o que o mundo esperava dele - e acreditava que correspondia a isso. Se era inverno, ele ficava resfriado - pois acreditava que era isso o que se faz no inverno: fica-se resfriado. É claro que se era verão e ele estava em férias, calçava suas ridículas botinas amarelas e ia pescar. E meu coração se enche de ternura ao imaginar George com suas botinas amarelas, sério e duro como uma estátua de uma tragédia grega na beira do rio, à espera dos peixes que inadvertidamente caíam em seu anzol. E se era outono, ele comentava o quanto amava o outono e que essa era sua estação favorita e nem lembrava mais porquê; é que ouvira alguém dizer isso no metrô e pareceu-lhe adequado, de forma que ele repetia isso há quase seis anos. É claro que ele fazia tudo o que acreditava que se deveria fazer. Era uma ovelha. Não sabia lutar. Não lutaria se o soubesse. Toda a sua vida era marcada por convenções e a isso se adiciona também uma paciência inacreditável para as coisas que George avaliava como 'o mundo', tudo perfeitamente preenchido e sem espaço para reticências. Ele até mesmo era simpático com as devotadas testemunhas de jeová que invadiam seus domingos para a pregação domiciliar (e com isso tiro qualquer suspeita de que George possa ser, na verdade, eu mesmo). Embora fosse católico e considerasse todas as outras religiões falsas e frutos da ilusão humana, tanto que ia à missa todos os domingos e até fazia parte do coro (tinha uma linda voz que parecia ferir a igreja com notas graves e profundas, quase como se um delicado mamute estivesse flutuando pela atmofera fluídica do templo), não pensava seriamente em Deus ou em religião. Não que fosse ateu! Não tinha profundidade para ser ateu. Mas acreditava que Deus estava à espreita, não dele, pálida formiga, mas dos outros - os homens maus, os perversos, os que transgrediam as regras e sonegavam os impostos - George jamais sonegaria um imposto! - e é provável que Deus também estivesse atento às freiras, aos padres, aos iluminados desse mundo, às solteironas piedosas e aos que pareciam dizer coisas importantes. Não a ele, claro! Ele era apenas um homem bom, apaixonado por uma mulher que seria dele - disso George não tinha dúvida: ela era perfeita, solteira, romântica, não fumava e gostava de vinho e, com alguma sorte não conhecia homem algum! Assim, aos domingos, George ia à igreja e depois comprava vinho e alguma carne que assava sozinho na churrascaria de seu prédio, voltando em seguida para seu apartamento de solteiro, tão parecido com ele mesmo que era quase impossível imaginar que outro, que não George, vivesse naquele lugar: havia o sofá, tomado de manchas de café e algum esperma - pois é claro que George se aliviava diante da televisão e espalhava sua vitalidade no sofá - e o que mais poderia fazer o pobre diabo? E seu quarto estava sempre bagunçado porque ele só o arrumava quando tinha certeza que traria uma moça para casa - o que raramente acontecia porque havia alguma coisa em George que às mulheres não agrava - talvez o nariz que acusava uma leve descendência judaica ou aquele ar de quem pede perdão ao mundo por respirar. Não sabemos! George era apenas George, uma pobre criatura. Seu quarto, portanto, vivia em desordem, com os lençóis espalhados e papéis soltos por toda a parte, tantos e tantos que George nunca encontrava alguma coisa quando precisava dela, encontrando-a apenas muito tempo depois, quando ela não era mais necessária. E nesses momentos - apenas nesses momentos - George tinha certeza absoluta que Deus prestava atenção nele: é que Deus, calculava George, ria-se às lágrimas enquanto George procurava uma conta de luz perdida ou um relatório. Ele tinha certeza que os papéis estavam aqui, e certamente estavam aqui, tinham que estar... mas não estavam. Nem aqui nem ali nem em parte alguma. George se irritava, o Senhor ria, sacudindo suas divinas banhas e tornava a rir novamente quando George reencontrava os papéis perdidos. Nesses momentos, ele acreditava profundamente em Deus e na divina necessidade de se divertir um pouco com Suas criaturas.


A cozinha de George era mais arrumadinha. Isso porque o rapaz tinha uma vizinha muito gorda e praticamente uma guardiã da vida de todos do condomínio. A cozinha de George dava exatamente para a sacada da gorda e ele não desejaria que ela pensasse que ele vivia na desordem. Assim, para aplacar os ânimos da robusta senhora, George mantinha a cozinha asseada e no cantinho superior da janela havia um pano de prato com letras cursivas bordadas: 'sexta-feira'.


O banheiro de George... eu não entraria naquele banheiro! Lá havia um cheiro estranho que eu não ouso comentar porque sou elegante demais. As bactérias pululavam por lá - mas George era muito cético quanto à existêrncia de seres que ele não poderia ver. E eu já vi George mais de uma vez com um chinelo na mão perseguindo uma barata, que sempre era mais esperta do que ele e conseguia fugir, deixando-o olhando para todos os lados, o que acentuava muito seu ar de débil mental. Ah, o quanto George me irrita nessas ocasiões!

Havia também um cesto enorme de papel higiênico e, ao lado do cesto (a origem de todo aquele fedor, por certo!) ele mantinha uma bem equipada cesta cheia de revistas de mulheres peladas, algumas em pleno ato. George era extremamente sexuado. Creio que, nessas alturas, todos já perceberam sua profunda animalidade. Ele próprio não a percebe, pois é apenas vago e inocente e acredita que todo aquele furor sexual é parte natural de todo homem. (Talvez ele tenha razão, eu não entendo nada de homens, embora seja um deles).


Recuso-me a descrever a pequena sala onde George mantinha seu computador, além de outras coisas. Ele chamava este espaço de 'escritório'. Ali havia o livro de PÍPPI MEIALONGA, que era a obra favorita de George. Também havia outros livros, alguns bons e outros ruins. Ele lia A ESCRAVA ISAURA e se derretia por causa da heroína, sempre visualizando-se como alguém que salva Isaura das garras pérfidas de Leôncio. Por fim, os cds. George gostava muito de música e mantinha seu rádio ligado em uma estação de blues - isso porque todos os cds estavam em capas trocadas ou as capas estavam vazias e ele raramente encontrava o que queria. Por que recuso-me a comentar mais o 'escritório' de George? Porque ali, diante das coisas que tanto lembravam o próprio George, é onde eu sinto maior identificação com esse pobre ser. A ideia de ser o próprio George me ofende! Ao ver seu computador, seu porta-lápis e suas revistas em quadrinhos - algumas contendo todas aquelas indecências dos japoneses de olhos enormes - eu desconfiei que pudesse ser ele mesmo. Fiquei aterrorizado e saí do quartinho, fechando cautelosamente a porta. Não, não, obrigado. Já tenho trabalho demais em ser eu mesmo.

E George pensa que nunca vai morrer. Isso o afasta definitivamente de mim. George acredita que a morte é um evento importante demais para acontecer com ele. Isso é para os estranhos, talvez para a vizinha, para o colega de trabalho, para os outros, apenas para os outros. Quanto a ele, viveria para sempre, casaria com Telma, teria seis filhos e um dia plantaria uma linda árvore, uma seringueira, e todos os seus filhos bateriam palmas e reconheceriam em George uma graça e uma grandiosidade que até então o mundo lhe negara.

13 comentários:

  1. Deus do céu, como George consegue ficar dentro desse apartamento? Socorro!

    (Se bem que, quanto à bagunça da papelada e dos documentos, eu não posso falar muito não... Onde foi que eu larguei a conta de luz, mesmo?)

    Aguardo a continuação! ^^

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  2. Pobre George, tão bonito e ao mesmo tempo tão patético. Em sua doce mistura de suavidade e perversão... e o banheiro. Deus me livre desse lugar, rsrsrs.

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  3. Rsrs Outra amiga minha, olhando a imagem, me disse q George é lindo e q casaria com ele. Mulheres!
    Raven, eu só dei essa desorganização ao George pq uma amiga me disse q ele, no fundo, era eu, meu alter ego... e eu tratei de criar traços q o afastem de mim (sou extremamente perfeccionista).

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  4. Vim no seu Blog pelo da http://postandosobreartes.blogspot.com/
    Vi que você é de PoA, eu tb.

    Beijo.

    Jacque

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  5. Sidney

    Gostei muito do desenrolar da história, da forma verdadeira que você descreve um apartamento de solteiro e uma das coisas que achei muito boa, são os momentos em que protagonista e autor se confundem e se encontram e voltam a se desencontrar.

    Parabéns

    Paulo

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  6. Obrigado. Eu fico completamente sem jeito quando alguém elogia as coisas q escrevo. Mas, logicamente, adoro receber palavras tão motivadoras. Obrigado ao Paulo e a Jacque.
    Jacque, eu sou gaúcho de Porto Alegre, moro no Bairro Bom Fim.
    Gilson, isso de bater papo com meus personagens e me tornar um deles é um velho vício meu. Obrigado pelas palavras. Gostaria tbm de ler o q vcs escrevem.
    Sydney Grassmann

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  7. Sidney

    Ainda não me preparei para publicar em Blog o que escrevo, embora tenho pensado cada dia mais nisso. Não fique sem graça, seu trabalho é realmente interessante e gostoso de se ler. Continue firme e nos presenteie com mias um capítulo.

    Abs

    Gilson

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  8. ai ai ai cadê essemenino que sumiu daqui??? :x

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  9. Oi, Luci, oi pessoal. Obrigado pelo carinho de todos. O capítulo em que a poooooooooobre e querida Telma decide pedir o divórcio tá vindo por aí. Espero, sinceramente, q gostem.

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  10. Gilson, ficarei encantado se puder ler sua história. Tenho certeza que é algo bom q vc está preparando por aí! Abraços.

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  11. Sidney

    Estarei providenciando um Blog, você está me animando. Quem sabe passo primeiro para sua leitura e depois coloco no Blog.
    Só sei que está emocionante ler.

    Abraços

    Gilson

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