
A mãe de Telma, dona Arminda, estava assando pãezinhos de queijo e não gostou nadinha da aparição súbita da filha com as duas crianças mais Bartolomeu naquela noite fria de junho. Passado o susto, ela, uma mulher eminentemente prática, voltou aos bolinhos e, enquanto passava as massinhas cruas nas mãos, modelando-as com fúria selvagem até que ficassem bem redondas, disse em tom sacerdotal:
- Tenho certeza que você sabe, querida, que o lugar de uma mulher é ao lado do marido. Não fica nada bem uma mulher casada apartar-se do esposo e sair às cegas a esta hora da noite. Vamos, reúna o que lhe restou de juízo e volte para casa.
E foi por isso que Telma, com as duas crianças e um Bartolomeu estressadíssimo retornou à estação de trem e tornou a voltar para casa, enquanto dona Arminda passou a chave na porta com um suspiro de alívio, agradecendo mais uma vez aos céus por seu próprio marido já ter morrido e lamentando por Telma, mas sabendo que com alguma sorte, ela também ficaria viúva mais cedo ou mais tarde e, de qualquer forma, ela não queria assumir nenhum tipo de compromisso - não agora que podia ir ao baile da meia-idade todas as tardes, além de jogar seu bridge com as meninas - Mafalda de 65 anos e Wilma de 72. Não. Definitivamente não permitiria que sua bem estudada paz fosse rompida por uma mulher jovem e infeliz com todos os seus fardos, ainda que esta mulher fosse sua própria filha. E aliviou a consciência ao lembrar que aguentara o falecido por mais tempo que poderia desejar sem que sua própria mãe fizesse qualquer coisa para ajudar. E se isso não foi o suficiente para aliviar o peso que lhe ia na alma, o bom vinho alemão que tomou em seguida o fez.
Enquanto isso, com o coração pesado e com a alma desacreditada na vida e no mundo, Telma entrou na sala de sua casa; mesmo do vestíbulo, era possível ver a figura altiva de Henri na cozinha. Ele comia um caqui. Comer um caqui para Telma era comer um caqui. Dá-se uma dentada na fruta e pronto. Mas não para Henri! Comer um caqui obedecia a todo um ritual de perfeccionismo como em tudo o mais na vida dele: com uma faquinha, ele descascava o caqui bem rente à superfície, colocando as finíssimas tirinhas de casca sob o formato de uma serpente adormecida no interior de um pires, enquanto cortava cada pedacinho do caqui, levandos-a à boca, um de cada vez. Estava em frente à pia da cozinha e não fez menção de se virar quando Telma e as crianças entraram.
- Papai! - Sophie invadiu a cozinha, correndo aos braços de Henri. - Estávamos na casa da vovó e fomos muito mal recebidos. Ela nos mandou embora!
- É verdade - disse Louis entrando após a irmã. - E mamãe nos mentiu que há uma guerra a caminho e que os turcos iriam nos matar a todos.
- É mesmo? - disse Henri com voz suave, dando beijinhos nas crianças e ignorando a presença de Telma, que entrou na cozinha e encostou seu corpo cansado no armário. - Vejo que viveram muitas aventuras.
- Nós fomos visitar a mamãe - falou Telma em um tom neutro.
Henri não respondeu. Seus olhos passaram rapidamente pela bagagem deixada no chão da sala, incluindo a casinha de viajar do gato.
- Muito bem, crianças. Agora, vão para o quarto. Preciso ter uma conversinha com a mãe de vocês...
As crianças deram um beijo de boa noite nos pais, libertaram Bartolomeu de seu confinamento e subiram em passinhos ligeiros a escada, comentando as últimas novidades do que lhes pareceu o dia mais excitante do ano.
Henri largou a faquinha no balcão e limpou os lábios. O relógio da sala tocou uma fina badalada indicando que eram oito e meia da noite. Telma aguardou.
O marido se aproximou dela. Começou a apalpar suavemente o pescoço de Telma. Acariciava, com suas mãos enormes, o pescoço, o rosto e os cabelos da mulher; surpreendendo Telma, ele abriu sua blusa e tirou um dos seios para fora, começando a sugar o bico como se fosse um bebê. Ela tentava timidamente escapar, sussurrar que parasse, puxar a blusa... ele continuou a sugar e então... e então ele parou. Fechou a blusa dela, olhou firme em seu belo rosto, ergueu bem alto a mão e (oh, Deus! Como me odeio por estar escrevendo algo assim!) desceu-a com toda a força na face de Telma, provocando um barulho inesperado na noite fria - e o cão da vizinha pôs-se a latir.
- Nunca mais, vagabunda, faça algo assim. Nunca mais!
Então, ele ajeitou-se, como se tivesse comentado com ela as oscilações do dólar. Passou as mãos pelo cabelo e disse no tom comedido e suave de sempre:
- E amanhã... livre-se disso! - apontou para a barriga de Telma e subiu as escadas em direção ao quarto.
O universo alargou-se. Ou, talvez, tenha iniciado seu movimento de retroceder. Sim, houve tempo para tudo isso. Ou talvez, não. Talvez fosse apenas um segundo longo demais. O fato é que Telma não se permitiu chorar. Ela apenas lembra de ter saído de casa. Com a bolsa que ainda estava em seu ombro e sem mesmo vestir seu casaco grosso de inverno, ela ganhou a rua. Todo o seu corpo pedia para chorar. Toda a sua alma negava este choro. Ela havia chegado no fundo do poço: agora só restava subir!
Telma nada sabia sobre fundos de poços, exceto que agora um deles era seu lar. Sabendo que sua alma só reconhecia a estação de trens, migrou para lá em passinhos rápidos, provocando uma ondulação de sons com seus saltos no saguão, agora rico em vagabundos miseráveis que esmolavam dinheiro, prostitutas baratas, bêbados e toda a fauna que Telma não conhecia, mas de cuja existência - ela que conhecia a dor - desconfiava.
Tomou um trem.
Sentou-se - não pensou seriamente em Henri; nem em si mesma ou nos filhos. No que pensou Telma? Ora, eu não sei! Não faço a menor ideia. Ela pensou em algo muito banal, como, por exemplo, em como a alma se separa do corpo após a morte e porque não o faz agora mesmo? Talvez fosse tudo mentira, ela pensou, os olhos secos, fitando o vazio. Um homem feio e sujo a fitou com uma espécie asquerosa de desejo. "Tomara que ele me mate", pensou Telma. Mas não queria - não agora! - tornar-se uma vítima medonha de si mesma. Olhou friamente para o homem e desceu.
Não sabia onde estava. Sabia apenas - e muito remotamente - que descera em um lugar bem próximo da casa de Henri (nunca mais seria sua casa! Era a casa de Henri ou a casa das crianças, mas não a dela: a dela era o fundo do poço!).
(Também não sabia, é claro, que estava muito, muito perto da casa de George).
Saiu da estação. Observou o bairro tão próximo ao seu. Prédios e prédios e prédios. Havia muitos estudantes por ali - um reduto de universitários, provavelmente.
Ela observou tudo: os prédios brancos, os bancos de praça espalhados aqui e ali; as velhinhas que recolhiam seus cachorros após tê-los levados para se aliviar na grama. Ela via e registrava - e sentiu uma imensa inveja de quem quer que fosse que vivesse nas redondezas. Qualquer que fossem os problemas daquela gente, pensou Telma, nenhum deles tinha um marido horrível com dois filhos que pareciam não amar a mãe e com um pequeno futuro assassinado na barriga.
E, de repente, ela, que já conhecia a Telma Boa e a Telma Má, conheceu também a terceira Telma: a Telma Louca. Isso porque, subitamente, como uma onda que brota do nada, ela desejou que os mendigos a estuprassem. E que depois a matassem - sem muito sofrimento, por favor! Apenas uma paulada certeira na cabeça - nada de muito sangue, sim? Ainda possuída pela Telma Louca, ela foi se encaminhando para o banco em frente ao prédio de George; e sentou-se ali; e reclinou-se até deitar-se de fato; e esperou que a Morte viesse; e adormeceu - apagou-se como uma velha lâmpada.
A porta do edifício abriu-se, e um rapaz apareceu trazendo o lixo. Seus olhos viram uma moça deitada sobre o banco - o que uma moça bem vestida e bonita estaria fazendo deitada em um banco público? George calculou que ela estava passando mal ou era uma bêbada. Curioso, aproximou-se.
E percebeu, ainda à distância, que aquela, outra não era, senão a Mulher do Trem! Mas não era possível! ... No entanto... Sim! Era mesmo ela! Era ela sem dúvida! O coração de George contraiu-se ao tamanho de uma ervilha e ficou pesado como chumbo, enquanto dava saltos verdadeiramente mortais dentro do seu peito, ao ponto dele pensar pela primeira vez: "Vou morrer!". Mas não deu grande importância à morte. Nem ao vento que espalhou o lixo que ele foi largando pelo caminho. Nem ao avião que passou provocando barulho, os aos cães dos vizinhos, ou aos gritinhos das crianças do prédio. George não viu nem ouviu nada disso. Todos os seus sentidos estavam presos à mulher do banco que lhe confirmaram: sem dúvida, era a mulher do trem! George - que muito raramente também era capaz de alguma lucidez - olhou para todos os lados e percebeu rapidamente que ninguém o olhava ou estava interessado na mulher do banco. Ele se lembrou do quanto aquela cidade era fria, ao ponto de chutarem um cadáver se lhes aparecesse algum atravacando-lhes o caminho. George fez que sim com a cabeça. E para o quê George fez sim? Vou saber! Não tenho a mais pálida ideia. Sei apenas que, sem pestanejar, George enfiou os braços sob o corpo da mulher e, tomando-a no colo, levou-a para seu apartamento.